fevereiro 25, 2011

o mundo mudou, disse galadriel no início do filme da sociedade. e então ela listou todas as mudanças que ela sentia. não vou listar mudanças, mas o mundo mudou.

e o blog também.


sobre o que nunca aconteceu, mas poderia ter acontecido com qualquer um.

fevereiro 18, 2011

ela me disse que não gostava da idéia de sexo oral. eu fingi que não ouvi, fingi que aquela pessoa não era real porque, deus, como alguém pode não gostar de sexo oral? ela dizia que era anti higiênico e eu só conseguia pensar em como eu passava bastante tempo do banho ensaboando e lavando minhas partes íntimas. o tempo que todo homem gasta nessas partes pode fazer qualquer um pensar que ele carrega uma tromba de elefante entre as pernas e precisa executar manobras além da imaginação para poder se lavar. mas a verdade é que está longe disso.

ela tinha os olhos grandes e castanhos, como dois grãos de café gigantescos que foram colocados em suas órbitas no lugar dos bons e velhos globos oculares. e ela tinha a pele morena do sol que gostava de tomar quando não fazia nada de especial. quando tinha tempo livre, e ela sempre tinha, levava um livro para o sol e e ficava lá, lendo por horas e horas, até achar que tinha lido demais e achar que seu corpo estava homogeneamente bronzeado.

estávamos sentados em frente a uma vela, que queimava vermelha e amarela, bruxuleando e criando sombras em nossos rostos. o fogo derretia a vela vermelha, que soltava sua cera que escorria pelos lados como seiva das árvores e chegava até o pires que servia de candelabro, onde ela se depositava e solidificava na porcelana fria. sob o prato a toalha quadriculada de restaurante italiano, limpa, asseada, as cores vermelha e branca se estendiam sobre a madeira e escorriam pelos lados.

não foi aí que ela me disse que não gostava da cunilíngua. não seria uma conversa apropriada para se ter durante uma refeição e ela se preocupava muito com o que se deve falar em determinados momentos. ela dizia que enquanto comia só se devia falar sobre assuntos leves que não nos façam nos distrair do sabor da comida. se eu perguntasse algo, ela responderia sim, mas com o mínimo de palavras possível. então preferi comer calado, ocasionalmente olhando-a nos olhos para ver seu belo rosto de bochechas rosadas que se movem seguindo o movimento de mastigar que executa. ela movia os lábios fechados de um lado para o outro do rosto.estavamos jantando juntos porque depois que uns amigos em comum haviam nos apresentado, nos achamos o mínimo interessante para fazer o convite para jantar e aceitar. talvez ambos estívessemos errados, a impressão que tive durante aquela refeição foi essa, de que aquela mulher jamais conseguiria me surpreender com nada nessa vida. foi depois da sobremesa que ela me dirigiu a palavra e conversou comigo além da meia dúzia de palavras que já tinha me dito, boa parte delas monossilábicas ou simples ruídos de concordância a cada pergunta que eu fazia. foi quando ela se afastou do prato de sobremesa num claro sinal que indicava que estava satisfeita, que ela resolveu que era hora de conversar.

“o que vamos fazer agora?” ela perguntou com um olhar inquisitivo, seu corpo pequeno sentado na cadeira, suas pernas cruzadas sob os panos da mesa.

“o que você está pensando em fazer?” perguntei para escutar sua opinião. geralmente mulheres não se impressionam com meu conceito de diversão: ficar em casa, ouvindo música, lendo um livro, escrevendo, bebendo uma cerveja, vendo um filme, jogando algum jogo no meu console, essas coisas que faço quando quero aproveitar bem o tempo que tenho. geralmente o conceito de diversão de mulheres envolve muita gente desconhecida, música bem mais alta do que o confortável, a impossibilidade de uma conversa decente, danças.ela me respondeu como a maioria das mulheres.

“ah, sei lá, você quem sabe.”

se eu realmente soubesse eu teria respondido que naquela noite iriamos para a minha casa, ou para a casa de algum amigo, beberíamos uma ou cinco garrafas de vinho, cerveja ou vodka, o que ela preferisse, e caíriamos no sono depois de atritarmos nossos órgãos sexuais por um certo tempo. mas eu não disse nada disso. eu estava fazendo como a maioria dos homens que não conseguem pensar em como preencher o tempo entre o jantar e a cama e, num momento de puro autruismo e preguiça, acha que o melhor a se fazer é se submeter à vontade da mulher, mesmo que isso seja uma imensa estupidez.

“não sei… acho melhor você escolher…” deixo as palavras no ar, olho para ela sorrindo.ela responde meu sorriso com um outro e move seus lábios pintados de vermelho.

“não quero escolher. quero que você me guie essa noite. quero fazer o que você quer fazer comigo.”

ela sorriu, mas não havia malícia em seu sorriso. obviamente ela não sabia de tudo o que passava na minha cabeça, não fazia a mínima idéia das coisas que eu já me imaginei fazendo com ela. foi nesse momento, na ausência de segundas intenções em sua fala, que me fizeram pensar, pela primeira vez na noite, que aquela noite não seria repleta de sexo como eu antes desejara.

“olha, eu tenho uns filmes lá em casa.” eu disse “e a gente poderia ver algum que você ainda não viu, algum que você queira, enquanto bebemos um vinho, uma cerveja, uma vodka ou o que raios você quiser. topa?”

eu jamais imaginaria que dez minutos depois estaríamos no meu carro, discutindo música enquanto eu dirigia para a minha casa.assim que abri a porta da minha casa, perguntou onde ficava o banheiro e foi para lá. fiquei na sala esperando. ela não demorou e saiu com as mãos cheirando a sabonete e ainda um pouco úmidas. senti a umidade quando ela colocou suas mãos nas minhas e se aproximou de mim.

“me mostra a casa, seu bobo.” então sorriu.

“você já conheceu a sala e o banheiro, não há muito mais a ser conhecido.” estendi meu braço mostrando o espaço onde estávamos. o único sofá ficava de frente para a parede onde ficava o móvel com os aparelhos de video e áudio, em que, na minha fase de cinéfilo, investira algum dinheiro em aparelhos que melhorariam a experiência audiovisual. nas paredes haviam dois quadros de cores discretas. havia também, na sala, uma cadeira reclinável ao lado do sofá, perto da porta de entrada do apartamento.

guiei-a então até a cozinha, onde acendi a luz e mostrei o lugar, onde uma pilha de pratos se acumulava, todos sujos, na pia, uma geladeira grande e branca se erguia imponente num canto e um fogão sujo figurava ao lado de um botijão de gás quase no meio da pequena cozinha. mostrei-lhe a lavanderia conjulgada, um tanque onde eu poderia deixar minhas roupas de molho caso eu deixasse roupas de molho. levei-a ao quarto, onde ela se surpreendeu com a quantidade de livros nas prateleiras e de cds nas gavetas.

“que fantástico! você realmente gosta de ler. admiro muito isso. queria ter mais tempo para a leitura.” essa é uma frase que escuto muito e que sempre me cansa.

“acho que a gente tem todo o tempo que precisa, é só saber dar suas prioridades. eu priorizo meus livros a muitas outras coisas. há pessoas que não conseguiriam viver um dia como eu vivo, assim como eu não consigo viver duas horas como eles vivem. livros são minhas paixões, cada um desses volumes foi lido e, hoje, estão aqui, porque de certa forma, por pior que tenha sido, ele fez parte de mim, de quem eu sou. é isso que acho, entende?”

“acho que sim.” ela olhava atentamente os títulos dos livros e os nomes dos autores, passando os dedos nas lombadas.

sentou-se na minha cama, onde eu estava sentado. estávamos olhando um nos olhos do outro.

“você já tentou escrever um deles?”

se ela sugerisse que eu tentasse, ela seria somente mais outra a fazê-lo.

“sim e não. eu me meto a escrever, mas ao mesmo tempo que faço isso, me arrependo amargamente, porque eu não sei. eu simplesmente não sei escrever. não existe um assunto que eu seja capaz de abordar de formas originais e diferentes e, se existe, uso tanto o mesmo tema que saturo e perco toda a vontade de escrever qualquer palavra que seja. às vezes escrevo textos que me agradam muito em uma noite apenas. às vezes, no entanto, e isso é a maioria das vezes, eu escrevo por muito tempo, duas, três noites, até mesmo um mês, e tudo o que tenho é um texto que não me agrada em assunto ou forma. além do mais, escrevo errado. não sei como explicar o que escrevo errado, não é bem a grafia das palavras, mas… há algo que me faz pensar que está errado. que está tudo errado! enfim, eu acho que falei demais, mais do que você gostaria ouvir, de qualquer jeito. nunca falei essas coisas para ninguém, sabe? eu sempre finjo que não escrevo, que não sei o que é o processo de criação, que meus bloqueios criativos são coisas comuns com que consigo viver normalmente. mas não são! quando não consigo escrever fico mal, triste, sofro de prisão de ventre alternada com diarréia, fico nervoso, irritado, deprimido. não consigo expressar minhas idéias com clareza. há um transbordamento mental que somente a escrita consegue aliviar. eu preciso escrever sobre as coisas, por mais mal que sobre elas eu escreva, há, em mim, uma necessidade de dizer ao mundo minhas impressões através de personagens que não são reais, mas tentam expressar neles as coisas que acontecem na vida de todos. no entanto, não tenho a disciplina para escrever um livro e, sempre que penso nisso, me entristeço, porque percebo que esse é mais um dos meus sonhos frustrados. sabe, vou te falar a verdade: não entendo o motivo por que estou falando todas essas coisas com você, são quase segredos meus e cá estou eu, compartilhando todos com você.” sorri “agora você vai ter que me contar algum segredo seu.”

ela ergueu os olhos para o teto, colocou a mão no rosto num gesto que expressava concentração e seriedade. estava pensando no que me dizer. resolvi ficar em silêncio para não atrapalhá-la.

foi então que ela me disse e eu fingi não ouvir.

pisquei algumas vezes, enquanto ela ficava vermelha. o silêncio imperava entre nós, no quarto, sentados na cama.

então ela cortou o ar com suas palavras.

“você vai escrever sobre isso?”

e eu só pude ser sincero.


alguns porquês.

dezembro 14, 2010

às vezes você me pergunta por que é que eu te amo. a verdade é que eu não sei responder isso tão bem. não é uma pergunta fácil, sabe? é extremamente difícil explicar sentimentos de uma forma racional, são de naturezas opostas. você pergunta os motivos do meu sentimento por você e eu não sei dizer se é por causa dos teus incisivos superiores e como eles deixam o teu sorriso tão lindo ou se é por causa dos teus olhos verdes me encarando enquanto eu te olho e acho linda. talvez seja apenas pela forma como a tua mão é pequena e como eu gosto de colocá-la na palma da minha mão só para então fechá-la sobre a tua. talvez um bom motivo para te amar seja a maneira como você acha que eu não gosto da tua comida, quando na verdade eu gosto dela de verdade e acho que se você praticar um pouco mais você se tornará uma cozinheira de mão cheia. eu te amo, talvez, por todos os abraços que você me dá e pelo jeito que você me aperta forte enquanto eu sinto o cheiro dos teus cabelos. talvez eu te ame de verdade por causa de como você fica extremamente linda e deliciosa usando os teus vestidos para ficar em casa e deitando ao meu lado para vermos na televisão algum filme ou seriado. talvez a razão de eu te amar seja porque você sempre reage da mesma forma com as brincadeiras que eu repito só porque eu sei que você reagirá sempre da mesma forma. eu te amo, possivelmente, por você parecer sempre tão paciente e compreensiva quando eu começo as minhas conversas mais absurdas e sem sentido, por você me ouvir todas as vezes que eu quero falar e por falar todas as vezes que eu quero ouvir. acho que te amo porque você tem as melhores opiniões formadas sobre os assuntos que mais gosto e, mesmo quando discordamos, conseguimos discutir de uma forma extremamente elaborada e crítica sobre os mais variados temas. é provável que eu te ame por você ter uma biblioteca de respeito, por você ter os quadrinhos que eu tenho vontade de ter e por você saber bastante sobre teoria dos quadrinhos, por você ter embasamento o suficiente para dizer quais são quadrinhos que devem ser lidos e quais são os roteiristas mais interessantes que já trabalharam na mídia (e mesmo você não conhecendo tantos roteiristas mainstreams atuais, você sempre está me ouvindo o suficiente para se interessar por uma ou outras coisas que foram ditas por mim). é bem fácil que eu te ame só porque você tem gostos muito semelhantes e, ao mesmo tempo, extremamente diferentes dos meus, por você gostar das coisas eletrônicas que eu não gosto e por você gostar dos clássicos do rock que eu gosto, por transitarmos entre o clássico, o blues, o jazz, o rock e as bandas novas que você me faz ouvir quando estamos juntos. eu acho que todas as vezes que você me perguntar por que é que eu te amo, eu deva responder que te amo porque você me faz sentir extremamente bem por ser eu mesmo com você e que ninguém mais no mundo consegue fazer com que eu me sinta assim, talvez eu diga também que é porque você tem o melhor sabor e que quando eu te vejo a vontade que sinto é te jogar na cama, no sofá ou até mesmo no chão, te despir e fazer as coisas que quiser com você. talvez eu te ame por todas as nossas diferenças, meu bem, porque você é uma garota nintendo e eu sou um cara sony, mas mesmo assim eu me apaixono por você todos os dias e ainda insentivo seus gostos te ajudando com os jogos retardados do wii – e você me ajudando a ficar viciado em jogos que antes eu menosprezava. acho que eu te amo por você ter uma voz linda e por me deixar extremamente excitado só de ouví-la falar. acho que te amo por você achar graça e rir das minhas piadas ruins. eu te amo porque você não tem problemas em comer comigo quando dá vontade e levanta e se arruma sem muitas frescuras e vamos comer um sanduíche no meio da madrugada só porque nós dois estamos com vontade e que se danem os possíveis futuros problemas coronarianos e os possíveis ateromas. dane-se tudo isso! eu te amo porque você me atura todas as vezes que eu reclamo da minha vida mesmo você sabendo que minha vida ainda é extremamente simples e sem problemas sérios – e talvez, apenas talvez, eu te ame por você me mostrar que meus problemas não são tão sérios assim e que tudo um dia vai piorar consideravelmente. eu sei que eu te amo porque você parece não esperar tantas coisas de mim, mas ainda assim eu sempre tento fazer alguma coisa legal por você, porque eu acho legal sempre ser capaz de surpreender de alguma forma, mesmo achando que faz muito tempo que não te surpreendo positivamente. eu te amo porque você gosta das pequenas coisas que faço e dedico a você, pelos versinhos que escrevo num papel e te entrego dizendo que foram inspirados por você e por versos de poetas de verdade que escrevo com minha caligrafia ruim e te entrego porque acho que você precisa lê-lo e não quero que você faça isso apenas através de um link de uma página de internet qualquer, quero que você saiba que estou usando essas palavras para expressar sentimentos meus que já foram melhor ditos com palavras dos outros. acho que te amo porque você se interessa por boa parte das coisas que eu falo e eu me interesso por grande parte do que que você diz. eu te amo porque você diz que gosta do que eu escrevo, mesmo às vezes achando que você só diz isso para me agradar. a verdade é que não acho que eu precise de motivos para te amar. não preciso racionalizar e fazer uma lista de coisas que justifiquem o meu sentimento por você. eu te amo porque te amo e isso só já basta. eu te amo porque sinto amor por você e é isso. não há nada mais a se fazer. por favor, não procure motivos para esse meu sentimento, eu te amo por te amar e, para mim, isso é mais que o suficiente.


noites.

dezembro 7, 2010

sentava-se para escrever e não conseguia. passaram-se dias e noites sem que isso mudasse. sempre que sentava, por volta das sete da noite, e se punha a escrever, não conseguia seguir além de algumas dúzias de palavras. ao relê-las, não conseguia sentir vontade de continuar trabalhando com elas, queria mudá-las completamente, começava a sentir arrependimento da hora em que resolveu sentar sozinho e se pôr a escrever. ele sabia que jamais conseguiria voltar a escrever como fazia, sabia que as palavras não sairiam mais dele como se fluissem vindas de um rio. a verdade é que o rio secou. foram muitas intervenções ao longo dos tempos, muitos baldes e baldes de pesca saídos desse rio que antes parecia infinito em sua riqueza. agora se arrependia de tudo aquilo, queria ter aproveitado melhor cada momento de inspiração, porque agora só lhe restava o trabalho árduo, as noites inteiras acordado para escrever três ou quatro parágrafos e não achar que eles conseguem agradar a si mesmo. há um mês não conseguia escrever qualquer coisa que o agradasse, até seus pensamentos pareciam difíceis de pensar, emaranhados por demais entre si, cheios de nós, sem fim.

a verdade é que acreditava ter perdido o interesse por tudo, o pouco interesse que tinha pelas coisas que o cercavam parece ter migrado para algum lugar sem que tenha sequer notado. não conseguia escrever, não conseguia ler, não conseguia assistir a um filme que precisasse de algum pensamento crítico. parecia querer desligar sua mente. queria desligar sua mente. queria acompanhar os programas de tv, mas não conseguia se estimular. sentia vontade de não sentir vontades, queria não querer com tanta vontade escrever, queria que, para ele, escrever não fosse algo tão nobre, tão essencial, tão primordial. queria que fosse apenas um hobby, que sua saúde psiquica não dependesse de seus rasbiscos, de suas notas sobre a vida. queria se enfiar num quarto escuro com alguns sanduíches de queijo, algumas xícaras de café com leite e só sair de lá quando o mundo dissesse: sentimos sua falta e realizaremos agora todas as suas vontades. mas o mundo jamais diria isso, o mundo não se importava com ele e ele, como bom leitor de alberto caeiro, bem sabia disso.

algumas noites, quando desistia de tentar escrever os parágrafos que lhe desagradariam, levanta da cadeira e saia de casa em busca de alguma forma de inspiração. geralmente descia os trezes andares de escada, o que o ajudava a se distair, e ia para o bar que ficava na esquina da rua onde morava. sempre pedia três tipos de cerveja, uma malzbier, uma lager e uma pielsen, nessa ordem. depois pedia uma dose de whisky sem gelo, tornava tudo num só gole, fazia uma careta – sempre, não importa quantas vezes por semana ele fizesse isso – e então começava a beber calado o resto da noite, sentado no mesmo lugar olhando o relógio pendurado na parede, observando as partidas de sinuca que aconteciam, ouvindo as conversas, as discussões, as brigas. ocasionalmente se levantava, interagia com uma ou outra mesa, oferecia uma bebida a alguém – geralmente mulheres sozinhas. tinha um padrão que gostava de manter sempre, não importa quantas garrafas entornasse. em dias de sorte, conseguia levar uma das mulheres para seu apartamento e se livrar dela assim que o sol nascesse. não era difícil para ele perder as pessoas, sabia exatamente o que dizer, e saber isso é uma arte.

quando estava de bom humor e tentando coisas novas, gostava de jogar sinuca, embora não fosse bom. não era fã dos jogos, a verdade era essa. sentia-se entediado com as partidas de dominó, não sentia a empolgação que os outros sentiam ao encaçapar uma bola, mas todas as vezes que jogava eram tentativas de conseguir essa emoção que todos tinham, à exceção dele. não conseguia entender por que não sentia o tesão nas coisas que o mundo inteiro parecia sentir. por mais vezes do que sempre pensou, quis ter essa vontade de vida, esse medo da solidão, do silêncio, do frio, da luz. muitas ocasiões se viu querendo se enfiar num buraco escuro, quente e barulhento e passar toda a noite a se movimentar por lá, mas recordava-se de todas as frustradas tentativas anteriores. há anos teve um relacionamento que acabou justamente por ele não ser a pessoa mais animada do mundo e por achar que tudo o que precisava estava no conforto do seu lar: seus livros – todas as suas influências, todos os seus mestres, os senhores da retórica, os mestres da descrição -, sua escrita – que sempre lhe pareceria amadora e indigna de figurar nas mesmas prateleiras das obras de seus grandes professores -, seus discos de música instrumental – sua principal fonte de força nas noites intermináveis de escrita e reescrita.

quando não saía à noite para o bar, colocava na vitrola um dos seus vinis antigos e sentado em sua poltrona, se punha a pensar na vida. sem nada em suas mãos para tomar notas, sem um livro em seu colo para ler, apenas ouvindo a música que saía das caixas de som. em algumas noites eram os noturnos de Chopin, em outras eram óperas de Wagner – gostava do alemão, via uma imensa força que propelia sua música e empolgava a alma -, em outras ainda, os trabalhos em violoncelo de Beethoven e uma vez por semana, como regra da casa, ouvia a nona sinfonia do início ao fim. ele sabia que parecia um antiquíssimo clichê, mas ele não tinha culpa de se sentir como sentia ao ouvir as palavras de Schiler tão imponentemente pronunciadas num coro que nos anuncia um fim tão próximo e indiscutível. “Wem der grosse Wurf gelungen/Eines Freundes Freund zu sein” acreditava que aquele que sabia como era se sentir assim, como o poeta alemão disse, era abençoado.

a verdade é que se sentia solitário muitas vezes. punha-se a descrer que o método da solidão sempre utilizado não era o que lhe caia melhor. a solidão pode ser assustadoramente opressora. lágrimas brotavam dos seus olhos todas as vezes em que pensava nas pessoas que uma vez estiveram ao seu redor e se foram por qualquer motivo, as pessoas que ele afastara de si voltavam para lhe assombrar em noites envoltas de pensamentos. seus pais enterrados, seus irmãos brigados, seus seis divórcios e a eterna sensação de nunca conseguir sentir algo autêntico por mais de alguns meses. todas as noites, às sete horas, quando se punha sentado em frente ao papel, pronto para escrever as palavras e transformá-las em qualquer coisa que pudesse fazê-lo sentir bem, tudo o que conseguia era se frustrar. o rio secara, não viria um dilúvio, um milagre divino para salvá-lo. sabia que jamais conseguiria escrever como antes.


o poeta.

novembro 12, 2010

um bar escuro. foi esse o lugar em que o encontrei. o maior poeta da atualidade, dono de inúmeros prêmios nunca aceitos, bebendo num buraco imundo, entre prostitutas e cafetões e usuários de drogas. no meio de tanta podridão e escuridão, vê-se o homem gordo, sempre sentado numa mesa no mesmo canto, com dois copos à sua frente: um cheio d’água e um com whisky e gelo. as pessoas passam por ele sem falar nada, sem reconhecê-lo, sem elogiá-lo ou qualquer coisa assim. todos ao seu redor parecem não tomar conhecimento de que estão ao redor do grande poeta dos últimos vinte anos. o homem que escreveu poemas políticos mais ricos que maiakóvski e juras de amor mais intensas que vinícius de moraes, um homem que explorou os sentidos em palavras como nenhum outro seria capaz de fazer. eu pergunto o que ele faz aqui e ele simplesmente olha para mim, tentando me reconhecer de algum lugar sem conseguir. toma um gole do copo de whisky e depois um de água.

“eu te conheço de algum lugar?” sua voz não expressa confusão, não tem o tom de voz de um bêbado, apesar de seus olhos parecerem cheios d’água como o olhar dos ébrios.

neguei com um movimento de cabeça.

“nunca nos vimos, mas conheço o trabalho do senhor.” minha voz deve ter subido umas duas oitavas enquanto eu falava, tornando-se irritantemente fina, completamente não natural. estava nervoso e quando tentava corrigir meu tom de voz, as palavras resolviam não mais sair. achei que seria melhor me comunicar assim do que não falar com o grande autor à minha frente “sou um grande admirador de suas poesias, senhor. nunca esperaria encontrá-lo aqui.”

“é, ninguém espera.” respondeu com calma, olhando nos meus olhos.

“o senhor é um dos meus poetas favoritos.” eu falo. minha barba está mal feita, minhas olheiras estão gigantescas, minha voz afinando está extremamente irritante, faz com que eu parece ter sofrido de algum tipo de problema hormonal durante a adolescência, estou lembrando um castrati. dá pra perceber facilmente que falta confiança na minha voz. nervosismo poderia definir bem a expressão que sinto meu rosto formar, sempre que iniciava uma frase tinha dificuldade em continuar as primeiras palavras. “sinto que suas palavras tocam a alma do homem com uma sensibilidade que outros poetas atuais simplesmente não conseguem alcançar, busca nas trevas, nos recônditos dos pensamentos, tudo o que não queremos que saia de lá.”

o homem sentado do outro lado da mesa, bebe do líquido amarelado que seu copo continha, e me encara.

“obrigado.” sua voz profunda e grave é calma e parece vir de uma tumba, tem um tom frio que faz sentir um leve arrepio. não fala mais nada.

extendo minha mão para que ele possa apertá-la. sorrio. tento parecer normal, mas creio falhar com louvor. ficamos em silêncio por um tempo. eu, em pé, mão pronta para ser apertada, encarando o homem enquanto ele apenas fixa o olha no recipiente à sua frente. ele inspira profundamente, ergue os olhos, larga o copo, extende a mão e sinto seus dedos frios e molhados ao redor da minha mão e em um tom de voz que deixa claro que não queria dizer nada daquilo que estava prestes a dizer, me direciona palavras.

“sente-se, meu jovem.” apontou a cadeira à frente da dele.

sentei-me colocando minha mochila no chão.

“então, o que você vai beber?” perguntou-me fechando os olhos e ficando com eles cerrados por um tempo. fiquei admirado com aquilo, cheguei a pensar que havia cochilado, mas abriu os olhos de repente e me pegou observando-o com um olhar curioso. senti o sangue correndo para minha face e a vergonha me dominando. as palavras quase desistiram de uma vez de mim, mas lutei por elas.

“uma caneca de cerveja. onde está o garçon?”

ergueu o braço esquerdo chamando o homem por trás do balcão que veio prontamente com um bloquinho anotar o pedido. repeti o que dissera e o homem se foi. mais uma vez o silêncio reinou. não sabia o que falar, não achava que continuar elogiando o trabalho daquele homem era o melhor a se fazer, era óbvio que ele já sabia de tudo aquilo e não precisava de mais um fã bizarro para confirmar essas coisas, todos os críticos já o faziam, todos os prêmios indicavam isso. perguntar de onde ele tira as idéias dele também não era nada inteligente. eu estava na frente de uma das criaturas que mais admirava e não sabia como proceder! era ridículo isso tudo.

“sabe…” sua voz foi cortada pelo engolir da bebida e depois seguiu molhada, mas clara e tranquila “eu venho todos os dias nesse bar. as pessoas aqui não me conhecem pela minha obra, ninguém chega junto de mim e fala coisas como você está fazendo. aqui eu sou chamado pelo meu nome, mas ele não quer dizer nada além disso. aqui dentro eu não tenho prêmios, ninguém ganha pra criticar minhas obras. aqui dentro o máximo que pode acontecer é alguém sentar na minha mesa e pedir que pague uma dose para ele ou dizer que vai pagar uma dose de qualquer coisa para mim, apenas por diversão, nada além disso.” tomou um gole d’água e me encarou fundo nos olhos. foi estranho o que senti naquele momento, um frio na espinha e então ele continou com a mesma calma “o garçon fala comigo sempre, tira uma brincadeira ou outra, a gente sorri, e a vida continua, ele num canto e eu no meu. quando entra uma moça bonita ele sempre vem pro meu canto com uma bebida na mão e comenta alguma coisa sobre ela, muitas vezes a bebida volta com ele. eu não estou acostumado a ter pessoas me fazendo elogios e esperando que eu diga qualquer coisa bonita sobre fazer arte.” fechou os olhos mais uma vez e ficou assim por um tempo. inspirou e expirou algumas vezes, quando suas pálpebras se levantaram, seu olhar castanho e profundo parecia perdido. “você já leu quais dos meus livros?”

quase não acreditei que depois de todo aquele discurso ele iria demonstrar algum interesse em mim.

“li quase todos os livros publicados pelo senhor, ‘versos brancos’ é um dos meus favoritos. inclusive, tenho um deles aqui. será que o senhor poderia autografá-lo? me desculpe por parecer tão fanático, mas a verdade é que estou bastante nervoso com esse encontro.” tirei da mochila o único livro de prosa publicado por ele. estava no meio da leitura. era uma coletânea de contos que tratavam basicamente do mesmo assunto de toda a carreira dele: mulheres. até agora, eu estava gostando. a crítica malhou o livro, na época do seu lançamento, fazendo parecer um dos piores livros já escritos, depois dele não houveram outras incursões do poeta no mundo da prosa.

ele pegou o livro grosso em suas mãos, seu olhar passava do livro para mim expressando certa desconfiança, colocou o volume em seu colo e começou a folheá-lo.

“o que você está achando?” perguntou sem parar de analisar o livro.

“estou gostando bastante. cada um dos contos aborda bem os temas propostos, gosto de como o senhor repete o tema sem jamais se repetir de fato. são os vários aspectos da mesma coisa, as mudanças de perspectiva fazem tudo parecer novo mesmo sabendo de tudo o que é aquilo. é interessante.”

“mas não te agrada como meus versos…” sua voz parecia carregar um certo rancor.

eu simplesmente não sabia o que dizer. resolvi ser sincero. “os versos que o senhor escreve são as melhores palavras da literatura contemporânea, seus versos são inigualáveis. a maneira como o senhor dobra o poema e o transforma em algo maior que o que ele parece ser não dá para ser copiado, o senhor é imortal por seus versos. sua incursão pela prosa não foi desastrosa como as críticas fazem parecer, mas não chegam perto do que seus poemas são.”

o homem à minha frente parou de folhear o livro. abriu nas primeiras páginas.”tem uma caneta, meu jovem?”

entreguei-lhe uma esferográfica que ele tomou com sua mão esquerda, escreveu quatro linhas e assinou. fechou o livro sobre a mesa e o deixou lá com suas mãos repousando sobre o volume. me encarava com certa curiosidade. sua voz calma continou a falar comigo.

“vou contar a você uma coisa, meu jovem. uma coisa que ninguém aqui nesse bar sabe, algo que nenhum dos críticos soube, algo que pouquíssimas pessoas tomaram conhecimento nessa vida.” nesse momento senti meu coração acelerar. o grande autor estava prestes a me contar um de seus segredos “esse livro,” ele dá um tapinha na capa do volume que repousa sobre a mesa “essa obra aqui, meu amigo, é a única que eu jamais gostaria de ter publicado. eu não sou poeta, não me sinto poeta, os versos não existem em mim, eles saem naturalmente, mas eu nunca os quis, entende? o que amo mesmo é a prosa. meu maior orgulho é esse volume aqui em cima.” mais uma vez dá tapas no livro. “acho meus poemas monotemáticos, não conseguem abordar nada, são rasos como essa mesa em que repousamos nossos cotovelos. se eu pudesse trocar todas as minhas publicações em verso por tudo o que gostaria de ter publicado em prosa, faria agora! mas nenhuma editora aceitou, disse que ninguém gostaria de ler minha prosa, ninguém se interessava por aqueles contos sobre mulheres que nunca existiram, situações que não importam para ninguém além de mim mesmo. como se os versos que escrevi fossem relevantes! enfim, jovem. você tem aqui na sua frente o motivo de eu continuar escrevendo – apesar de vocês, o público, nunca verem metade do que escrevo, de só terem conhecimento dos poemas iguais que escrevo desde que aprendi que a forma mais rápida e indolor de se esquecer uma mulher é através dessas linhas.” então ele levantou a voz pela primeira vez em toda a conversa. “agora fique aqui, com o livro e me deixe em paz, por favor. pode voltar ao bar, pode trazer seus livros para que eu os assine todos, mas, por favor, não vamos falar mais sobre isso, ok?” ele levantou antes que eu pudesse esboçar qualquer reação e saiu do bar.

puxo o livro sobre a mesa para mim. abro na página auografada e vejo que escrevera versos. não os reconhecia de nenhum de seus livros:

“parece que quanto mais tentamos
quanto mais juramos nunca trairmos aquilo que amamos,
mais afundamos,
mais nos enfiamos nas sombras da cidade prateada.”

então seguia seu nome assinado com a tinta negra da esferográfica.


a queda.

outubro 17, 2010

eu acreditava que ela tinha algum tipo de super poder. porque as coisas que eu sentia quando estava com ela não estavam no livro. sério. é engraçado de pensar nisso, sabia? mas hoje, talvez eu entenda que posso ter exagerado um pouco todas elas, pelo calor do momento, pela empolgação, a novidade. você, sabe… às vezes podemos nos emocionar com coisas que normalmente não o fariam e, quando pensamos num motivo para sentirmos aquilo, quase nunca encontramos algo racional para justificar. quando estava com ela era mais ou menos assim, sabe? eu não sabia o que sentia, mas era simplesmente bom, e eu jamais pensei que ela fosse me fazer algum tipo de mal. com ela eu me sentia protegido, seguro. era como se eu tivesse sempre alguém pra me proteger, como se nada pudesse me atingir porque, afinal de contas, eu estava com ela e nada entraria no meu caminho e todas as coisas do mundo dariam certo.

lembro bem de dias felizes com ela. nós dois no meu quarto/sala, sozinhos, estirados no chão, as roupas espalhadas, enquanto o meu som tocava bem alto uma daquelas baladas punks que eu tanto curtia. lou reed cantou várias das músicas que eu dediquei tanto a ela. para nós dois não havia vida lá fora. sério, sentia como se só existisse a gente no mundo, e eu simplesmente não me importava com mais nada, porque sentia que tinha tudo: minha cerveja na geladeira, uma garrafa de vinho ao meu lado, ela comigo e a sensação boa de segurança e despreocupação. foi numa noite de sexta que deitamos, foi na manhã de segunda que levatei e fui trabalhar, um dos poucos momentos em que nos separavamos, afinal, era preciso um pouco de trabalho para conseguir bancá-la, satisfazê-la e fazê-la continuar comigo para sempre – quando estamos apaixonados só pensamos no para sempre, não existe nenhuma outra medida de tempo para um coração satisfeito.

o trabalho era algo que eu queria evitar com todas as minhas forças. naquela época eu não sentia prazer nenhum em fazer o que fazia. mas se eu parar para pensar em todas as pessoas que realmente sentem prazer em seus trabalhos, posso dizer que eles são muito mais as exceções do que eu. então, tudo o que eu fazia era pelo dinheiro. as pessoas passavam por mim e eu simplesmente fazia de tudo para me livrar delas o mais rápido possível e nunca mais vê-las na minha frente. alguns chamam isso de eficiência, mas o atendimento expresso quase nunca tem a qualidade de um mais demorado. naquela época eu só queria cumprir minha meta e sair cedo. por dois meses ganhei o prêmio de empregado do mês por ter a maior produção em menos tempo. cumpria minha quota diária rapidamente e enrolava um pouco para poder ir para casa e tê-la em meus braços mais uma vez.

outro fato que me vem à mente quando penso nela é na noite em que nós dois fomos três pela primeira vez – a primeira de muitas, no entanto, essa foi a mais marcante. eu, ela e raíssa, os três na cama, os três fora da cama, todos dentro de todos, todos se usando sem nenhum sinal de posse, incrível desprendimento. uma verdadeira loucura e, por muitos momentos, perdemos noção de nossos corpos e viramos o todo e o todo era um só. raíssa e ela tinham um gosto doce e uma provou da outra, foi lindo. por um tempo nós três mantivemos uma boa relação e raíssa aparecia nos fins de semana e todos nós viravamos uma coisa só mais uma vez. depois dela vieram fabiana – amiga de raíssa, que participou da nossa primeira, e infelizmente única, reunião a quatro -, alessandra, adriana, marina, marta, sabine, zuleica, thamires e muitas outras que não consigo lembrar do nome. era por coisas assim que eu a amava tanto, ela sempre esteve segura de que, por mais que houvessem outras, meu coração era inteiramente seu, assim como todo o meu ser. chego a pensar até que acreditava que sem ela eu não seria capaz de viver, e penso isso porque creio ter dito isso a ela uma noite. mas não tenho essa lembrança. há muitas coisas de nosso tempo junto das quais não me recordo. espantoso é ter todas essas lembranças que tenho.

não lembro exatamente como foi que aconteceu, quem foi que tentou me dizer que ela não estava me fazendo bem. lembro do que senti quando me disseram – acho que foi minha irmã sabrina quem me alertou – era raiva, vontade de esganar esse ser que não queria me ver feliz com ela. e o pior de tudo, minha própria irmã, que deveria querer minha felicidade tanto quanto eu queria a dela! me senti traído, lembro bem disso, porque essa foi a primeira noite que passei na prisão. tentativa de homicídio. havia uma faca na minha cozinha, uma dessas facas de serrar pão, mas uma faca, ainda assim. eu saltei sobre minha irmã e tentei enfiar e faca em seu coração – eu sabia bem onde ficava o lugar mais fácil de alcançar o músculo e não poupei energias para isso. ela gritou e se debateu, enquanto eu gritava que ela era uma vadia e que nunca seria metade do que ela era para mim, que nunca faria um homem tão feliz quanto ela conseguia me fazer, então o vizinho arrombou minha porta e entrou, me imobilizando e chamando a polícia. minha irmã não o impediu, depois de duas noites na delegacia, ela retirou a queixa e eu saí. voltei para meu apartamento e lá encontrei minha mãe e meu pai, que viajaram só para sentarem na minha cama suja e me olharem com olhares reprovadores. disseram que eu iria com eles, que eu não pagaria mais o aluguel, que voltaria a morar na casa deles, que trabalharia na cidade de onde vim. disseram muitas coisas e, em mim, crescia raiva e vergonha. raiva deles e vergonha dela. recusei e recusei, neguei-me relutantemente a voltar para a casa deles, mas estavam irredutíveis. disseram que falaram com meu senhorio, que ele concordava e que já arranjara um novo inquilino para o quitinete. eles haviam planejado tudo para me afastar dela, mas faltava minha vontade, que eles pareciam ignorar. fui arrastado de volta à nossa cidade, onde arranjaram um trabalho num lugar qualquer e seguiram a vida, me espionando. me separaram dela sem dó ou piedade.

por muitas vezes tentei voltar pra ela. encontrava com ela às escondidas, bolava planos absurdos só para tê-la comigo por pouco tempo. fiz essas coisas até o dia em que fui parar no hospital depois de um acidente. foi então que vi que talvez fosse hora de acabarmos. eu já não produzia nada no trabalho, já não tinha mais o dinheiro para sustentá-la, e as visitas que lhe fiz acabaram com o pouco que tinha. havia me tornado uma pilha de nervos, minha calma acabara e tudo me fazia explodir. em um mês perdera quase dez quilos, não sentia mais fome, tudo o que pensava era nela e em como queria estar com ela e em como não conseguia. tentei roubar dinheiro dos meus pais, mas eles estavam um passo à minha frente e conseguiram evitar. foi então que me senti no fundo do poço, afundado em merda até o pescoço. lembro perfeitamente do dia em que me olhei no espelho e não me reconheci. foi o dia em que resolvi que era preciso desistir dela, que agora ela seria de outro – ou outra, ela se sentiu muito bem com raíssa, fabiana, zuleica e as outras. que eu tivera meu tempo com ela e que agora devia seguir em frente, como as pessoas fazem em todos os outros relacionamentos. havia acabado. e daquela vez eu tinha decidido.

faz muito tempo que não a vejo. às vezes acho que havia coisas boas em estar com ela, coisas que hoje não tenho, mas… penso estar enganado. me enganava com ela, todos os dias, pensando que ela estava me salvando porque era seu dever, porque ela tinha super poderes, porque era heroína, mas não… tudo o que ela fez foi me levar ao céu, fazendo crer que eu aprendera a voar, e me largar. a queda machucou bastante e às vezes acho até que ela ainda não acabou.


bunda.

outubro 7, 2010

“encontrei a bunda perfeita.”

“ahaha e de quem é essa bunda?”

“isso realmente é importante?”

“não?”

“ora, cara, o mais importante é a bunda perfeita, não sua dona. mas tudo bem, ela tem vinte e um anos, um metro e sessenta e três, cerca de cinquenta e quatro quilos, extremamente bem distribuídos por seu corpo branco e cheio de sinais. tem uma cintura fina, uma barriga batida, magra, e os quartos largos, meu amigo. largos e carnudos, como uma boa bunda deve ser. e devo dizer, em questão de mamas, ela não é mal algum, não deixará esfomeado nem a mim nem a seus descendentes. mas isso realmente não é importante. o que importa é sua bunda linda.”

“e de onde ela é, essa bunda sem nome?”

“ela é da vida, do trabalho, do ônibus, da pracinha, do super mercado. sei lá, cara! você está fazendo muitas perguntas sem cabimento. já já vai me perguntar o nome da bunda.”

“e essa bunda tem nome?”

“é claro que tem, irmão. toda bunda tem um nome…”

“e qual o nome dessa bunda?”

“raphaela. com pê agá, de acordo com ela.”

“sei… eu conheço?”

“sei lá. você conhece alguma raphaela com pê agá?”

“não que eu saiba.”

“então, até onde você sabe, você não conhece.”

“então você interagiu com essa bunda, conte-me dessa interação.”

“é claro que interagi. você acha mesmo que eu veria a bunda mais linda do mundo e não interagiria?”

“vai saber, cara? sabe-se lá a que distância ela estava de você e tudo mais…”

“ela estava perto, cara. perto o suficiente para que eu sentisse o cheiro dos seus cabelos e achasse bom. melhor que aqueles cabelos que só cheiram a creme ruim. ela tinha um cheiro bom. algo que me lembrava o mar e flores. e, por um breve momento, eu achei que estava em outro lugar que não uma sala cheia de gente. fechei os olhos um pouco e, quando os abri, depois de pensar que estava num campo ouvindo as ondas quebrarem na areia ali perto, aquela bunda estava parada na minha frente. sério, linda, grande, dentro de um jeans que enaltecia toda sua beleza e grandeza. e eu senti vontade de, literalmente, comer aquela obra prima. dar uma mordida em uma de suas nádegas para arrancar um pedaço. precisei de muita força de vontade para não fazer isso. depois imaginei várias coisas que faria com aquela mulher se a tivesse na mesma cama que a minha. há quem diga que eu só falo as coisas, que talvez eu não fizesse nenhuma delas, talvez você seja uma dessas pessoas, cara, mas acredite, com a bunda da raphaela eu faria coisas que eu nunca me imaginei fazendo com bunda alguma! então ela virou e sorriu, acho que ela não me notou encarando sua bunda. eu sorri
de volta, ela perguntou se eu era de tal lugar e eu disse que era e ela disse que já tinha me visto antes e eu disse que infelizmente não podia dizer o mesmo e sorri mais uma vez. ela riu. disse que estava indo almoçar agora e perguntou se eu queria ir. eu não estava com fome, mas disse que sim, que queria ir. foi aí que ela me disse seu nome e seguiu na minha frente – admito que deixei que ela fosse um pouco à frente para que eu acompanhasse seus movimentos com o olhar. então almoçamos, conversamos amenidades, fingi o mesmo interesse que sempre tento fingir. aquela coisa de sempre, procedimento padrão para as mulheres que não conseguem ser mais do que… bem… uma bunda, por mais que seja A bunda.”
“ahahahha”
“é sério, cara. olhe para mim. eu falo com todo o meu coração. a bunda que vi não é apenas uma bunda. até porque, como diz um amigo meu há muito tempo sumido, bunda tenho eu, bunda tem você. o que raphaela tem é um monumento rabal.”
“porra, cara. essa raphaela deve ser um absurdo de mulher, então.”
“ela é algo que saiu de sonhos, meu velho. se eu pudesse daria um beijo nos pais dela só por terem feito e alimentado esse ser. as coisas que falo podem parecer sem sentido, podem soar como loucura, mas é que teus olhos não foram abençoados pela visão daquela bunda.”
“certo, certo. e você só viu essa bunda uma vez?”

“não. eu continuei encontrando com ela no mesmo lugar que a encontrei pela primeira vez. temos sorrido um para o outro e, qualquer dia desses vou chamá-la para qualquer programa que me faça chegar a palpar suas nádegas lindas. ahaha e você, cara, como está?”
“ah, cara, estou bem. faz uns seis meses que estou trabalhando num hospital e eles estão me pagando direitinho. eu queria abrir um consultório, mas ainda não creio que esteja pronto para isso, sabe? creio que faltará clientela e, no momento, tenho algo mais importante para fazer.”
“é, cara, e o que é?”
“estou pensando em pedir a beth pra mudar pra minha casa, termos uma vida de casados e tal. talvez até com alianças e essas coisas. ela não curte essa tradição toda, mas acho que ter testemunhas e certidão de casamento é um ritual que eu queria ter, sabe?”
“ahahah, nossa, cara, você está falando em casar! isso é foda! parabéns! dá cá um abraço!”
“ahaha, obrigado, cara. não acho que estou me precipitando, você acha? eu e ela estamos juntos já faz uns bons quatro anos, passamos por muita coisa juntos – e algumas à distância. acho que estamos prontos para, finalmente, morarmos juntos, começarmos a nossa própria família.acho que estou na idade para filhos, antes que eu fique velho demais e perca a energia para cuidar deles, sabe?”

“acho que sei, mas eu ainda não sinto as necessidades de me atrelar a uma pessoa só. talvez eu pense em me atracar a raphaela por vinte e quatro horas seguidas, entrando e saindo de cada um de seus buracos, mas… não consigo imaginar mais que isso. por exemplo, não consigo me imaginar mais de cinco meses ao lado dessa mulher. e quando vejo você com a beth, cara, eu sinto medo de nunca conseguir achar alguém como você encontrou, sabe? se sentir completo com a outra pessoa, ou, se não completo, menos vazio. parece que eu só consigo pessoas que me fazem pensar no quão vazio eu sou e em como isso parece nunca mudar, sabe? isso me assusta muito. eu… queria uma cerveja, ou uma dose de cachaça.”
“eu entendo você, cara. antes da beth eu via amigos com suas mulheres e pensava a mesma coisa que você. e olha, parece que o que vou dizer é só mais um clichê, mas… essa mulher que você quer, ela está aí, cara, ela vai chegar pra você, quando você menos esperar. você vai estar numa fila de banco, andando em algum lugar, ou, quem sabe, não é essa bunda que você está falando aí? o que você sabe sobre ela? sabe seu nome, sabe que a bunda dela é linda e algumas besteiras sobre seus gostos, que pelo que você me fez entender são ruins, mas… talvez ela seja capaz de te surpreender. talvez tudo o que falte seja estímulo. estimule-a, cara. compartilhe coisas com ela e deixe que elas compartilhem com você. devo dizer que muitas coisas que a beth me mostrou não me agradavam a princípio, mas hoje… hoje eu talvez não consiga imaginar minha vida sem elas. tente você também. e… vamos tomar essa cachaça, ou cerveja, ou o que quer que seja. tem um lugar aqui perto que é bem calmo e tem o melhor filé com fritas que eu já comi.”


o livro.

setembro 28, 2010

o livro em suas mãos tem mais tempo que o tempo seria capaz de contar e já foi manuseado por inúmeros homens e não homens. a capa escura não quer dizer que o couro que a encaderna é antigo, pensar isso é um erro, já que se trata de uma criatura que deixou de existir há éons, cujas formas se perderam nas mentes e o único registro de sua existência está ali, no livro. as folhas ásperas sentem seu toque e se comunicam com ele, os símbolos gravados com algo que parece sangue, inintendíveis ao primeiro olhar, se fazem compreender com um pouco de concentração. o volumoso tomo chegara em sua casa de forma misteriosa, um dia, há cerca de dois meses, aparecera na mesa de sua sala, com uma carta de poucas palavras escrita à mão. nela dizia apenas que havia muito mais no universo do que o homem sonhava e que aquele era a legítima herança que lhe fora deixada.

embora a verdadeira origem do tomo seja um completo mistério, há mil e trezentos anos o livro foi encontrado pelo poeta árabe Al Azif, que recebeu os créditos por sua escrita, sendo ele, na realidade, o difundor do livro, fazendo cópias quase autênticas em diversas línguas (línguas desconhecidas por Al Azif, inclusive) que apresentavam o mesmo poder do original – não se sabe como conseguiu realizar tal façanha. enlouquecido e tomado pelo poder do livro, perambulou pelo mundo carregando o volume original entre seus pertences, deixando a seus herdeiros suas obras em diversas línguas, para que o conhecimento nunca se perdesse. a verdade, que nunca saira dos lábios do poeta, é que descobrira o tomo em uma exploração de tumbas na região que hoje é jerusalem, na qual se envolvera a fim de solucionar alguns de seus muitos problemas monetários.

no entanto, há dois mil anos o mesmo livro esteve nas mãos de outro humano, nascido na galiléia, chamado de nazareno por seu povo. ao expor suas idéias e seu conhecimento, ao utilizar dos conhecimentos encontrados no tomo, falando das verdades inconvenientes e dos mistérios e segredos que regem coisas maiores que os próprios humanos poderiam imaginar e aceitar – ao derrubar a suposição vigente na época, e até hoje, de que aqueles seres de barro eram os donos do universo -, o homem foi condenado por seus iguais e o livro foi guardado por seus aliados por séculos, como uma relíquia sagrada deixada pelo homem que revolucionou a humanidade. até que al azif a encontrou.

milênios antes do nazareno, o livro foi lido por uma mulher que, tomada pela iluminação e pela verdade, pela sede de conhecimento, compartilhou-o com seu parceiro e despertou a ira de um dos deuses menores do universo. seu temor pelo que havia no livro era tamanho que não teve coragem de tocá-lo, simplesmente baniu suas crias – que, embora não soubessem, tinham em suas mãos o conhecimento que os tornaria maior que ele próprio. ambos se espalharam pelo mundo e dominaram, com o conhecimento adquirido através do tomo, roubado um dia por seu filho, que matou o irmão ao realizarum dos rituais descritos nas páginas amareladas do tomo, tornando-se, assim, intocável  por humanos e imaculável pelo tempo, o primeiro imortal, que caminhou por todo o mundo e desposou suas inúmeras irmãs e com elas teve filhos e formou tribos e cidades ao redor de todo o mundo conhecido.

hoje um de seus herdeiros tem o pesado volume em suas mãos. o livro que foi lido por deuses e escrito pelos anciãos do multiverso, depois de muitos anos de buscas vãs e tentativas frustradas de destrui-lo – tendo muitas de suas cópias apagadas da história por fanáticos religiosos com medo do verdadeiro conhecimento -, volta a pertencer a alguém com o potencial de aprender e entender as complexidades sem sucumbir por completo ao peso do conhecimento.

o homem que encara o livro tem olhos profundos e negros, como se a noite estivesse sempre presente em seu olhar, como se a escuridão jamais o abandonasse. todos os dias, depois de fingir uma rotina de trabalho, seguindo com suas interações sociais como se realmente fossem importantes, se recolhe em sua casa com a finalidade de aprender os segredos que o universo não revela sozinho, porque não está nos objetivos das maiores criaturas a compreensão completa do universo por todos, não ainda. mas em seu peito arde atodos os dias a vontade de espalhar a palavra única e verdadeira, de fazer o mundo compreender o universo e entender as verdades. todas as noites realiza ao menos um dos inúmeros rituais contidos no livro, a inversão da entropia, a energia que nunca se dissipa, a criação de vida onde antes não havia. a cada raiar de sol sua mente se encontra mais poderosa, cada vez mais perto da verdadeira iluminação e da completa loucura.

descobriram o homem em sua casa, seu corpo, antes robusto, completamente irreconhecível, magro como se tivesse sido sugado por dentro, a pele grudada ao osso, o fedor insuportável de fezes e carne apodrecendo. os peritos disseram que a morte viera há 72 horas, mas a desconfiança surgira no trabalho há duas semanas, quando simplesmente deixou de aparecer por lá sem ligar e não atendia aos telefonemas. vizinhos relatam que viam movimentos na casa, especialmente à noite, quando a casa parecia ser iluminada não por eletricidade, mas somente por velas. nada de estranho foi encontrado em sua residência, nem velas, nem livros.

o livro estava nas mãos calejadas e escuras de um homem de barbas longas e bem feitas, suas unhas longas e dedos cheios de anéis seguravam firme o volume, pressionando contra seu corpo. usava um terno alinhado e seu cabelo negro escorria por sobre seus ombros, seu rosto moreno apresentava marcas de um sol que costuma ser visto em trabalhadores braçais, o sol de milênios. o tempo não passara desde a última vez que tivera o tomo em suas mãos. e agora voltava para aquele que soube realmente usufruir do verdadeiro conhecimento oculto contido nas milhares de páginas. o livro voltava ao primeiro e único imortal.


Clarice e Philip.

setembro 22, 2010

clarice recebeu seu nome por causa da escritora. para ela, isso é motivo de orgulho. ser chamada como a escritora – dona dos melhores livros da literatura brasileira, ela me diz – a faz estufar seu peito – um busto pequeno, de seios não fartos, mas firmes e suculentos, donos de uma brancura de fazer inveja a muitas folhas de papel. ela não parece aceitar bem quando rio todas as vezes em que fala dos livros, mas parece gostar quando – enquanto lambo seu pescoço e ela geme de leve com minhas mãos passeando por seu corpo, sentindo suas carnes das ancas e seios – digo que ela é melhor que a homenageada em todos e quaisquer sentidos.

os pais de clarice eram educadores. o pai ensinava literatura e a mãe ensinava português (não cabe aqui meu relacionamento com os dois. talvez em tempos futuros eu conte os causos divertidos e os dramas de ter sogros fanáticos por escritores que não gostamos). clarice saiu uma fanática por livros e foi numa das bienais da vida que a encontrei. ela me viu perguntando a algum dos trabalhadores do estande em que estavamos se havia algum escritor nacional interessante. então ela veio na minha direção – enquanto o vendedor me indicava uns livros – e me disse que devia ler clarice. ela disse isso num sorriso que indicava que, se meu rosto agisse como tipicamente – com uma careta seguida de um longo não – , não falaria com ela por muito mais tempo. no entanto, ela era uma garota tão linda – os olhos verdes, as sardas no nariz, os cabelos castanhos, os lábios e bochechas rosados – que mesmo depois daquela indicação eu quis manter uma conversa com ela. então, fingindo um interesse que não tinha, desviei minha atenção dos conselhos que pedira ao vendedor e me foquei em perguntar a ela o que ela recomendava. ela me falou de livros que já li – quatro – e alguns dos que não li, mas fingi completa ignorância em relação ao assunto e disse nunca ter lido nenhum trabalho dela. no meio dessa conversa inicial trocamos nomes e emails com a promessa de auxiliar um ao outro com boas dicas de leitura. cumpri minha promessa, ela não.

depois dessa nossa conversa, cerca de dois dias, creio, ela me apareceu no email perguntando como eu ia, o que fazia e se tinha encontrado a mágica de ler clarice. eu disse que tinha começado a ler clarice agora, porque ela só tinha me escrito agora. ela disse que eu deveria ler a original – consigo ouvi-la dizendo isso com sua voz aguda e estridente, às vezes irritante, num tom de chateação por eu não ter feito as coisas como ela queria – e que, se eu quisesse, ela me emprestaria seus livros mais queridos. eu concordei, marcamos de nos encontrar numa cafeteria no centro da cidade. cheguei e ela já estava lá, perguntei se havia chegado há tempo e ela disse que não, que acabara de chegar (mais tarde ela confessou que tinha chegado lá uma hora antes de eu aparecer, tomado uns dois cafés irlandeses e começado a escrever duas vezes uma carta indicando seus trechos e aspectos favoritos da escrita da clarice original, mas havia desistido as duas vezes). tinha os livros numa sacola, eram três, eu disse que achava melhor não levá-los todos e ela disse que fazia questão que eu os levasse todos, que não tinha pressa e que havia uma ordem de leitura especial. perguntei se era a cronológica, para sentir a evolução da escritora, e ela me disse que não, que era uma ordem sentimental – o primeiro livro dela que ela lera, passando pelo mais marcante e pelo mais “intenso”. eu disse que leria, que pensaria nela enquanto lesse. ela sorria. depois de algum tempo de conversa, resolvemos dar um passeio – fora do café o sol já tinha se posto – em busca de um bar. foi no caminho do bar que coloquei meu braço ao redor de sua cintura e senti seu calor vindo em minha direção, então, seus lábios vieram contra os meus e sua língua se movia feito uma enguia fora da água na minha boca.

passei quatro semanas lendo os três livros que ela me passou (dois deles eu já tinha lido, mas não disse a ela e terminei relendo-os) e não consegui gostar de nenhum. nesse meio tempo, encontrei com clarice algumas vezes – em média, saíamos duas vezes por semana, o que nos deixa com cerca de oito saídas – e começamos a nos relacionar carnalmente. creio que foi na quarta ou quinta saída que aconteceu nossa primeira conjunção carnal. foi na tarde de sábado em que devolvi seus livros, o dia em que ela me chamou para ir à sua casa pela primeira vez, o dia em que conheci válter e cecília, os pais de clarice. uma palavra para descreve-los seria excentricidade. eles me perguntaram sobre meus pais, sobre o que eu fazia, perguntaram se eu gostava do que fazia, eu menti como faço com todos e disse que sim, que estava achando tudo muito interessante. eles continuaram me interrogando para saber onde estudei, com quem andei, que músicas ouvia, que livros lia, que filmes assistia. e respondi a tudo com prontidão e solicitude. querendo passar uma boa impressão a quem, achava, seriam meus futuros sogro e sogra. eles me falaram da infância de clarice e outras amenidades assim até que chegou a hora do da janta e ela foi servida. nos alimentamos e depois saí com clarice para um show num teatro, havia uma exposição fotográfica na ante sala. não lembro bem o que a banda tocava e nem prestei atenção às fotografias expostas. naquela noite clarice dormiu na minha casa sem que ninguém além de nós dois soubessemos. foi aí que descobri que clarice adorava dar o cu. ela sentou no meu colo, depois de nos chuparmos por um bom tempo, e disse – ao meu ouvido – que queria dar o cu pra mim. devo admitir que isso me emocionou, até porque nunca tinha encontrado alguém que me dissesse isso. geralmente eu tinha que insistir em tentativas frustradas cujas respostas variavam entre: “só depois do casamento” e “nunca! jamais!”, passando pelo “eu dou o meu se você der o teu”. devo esclarecer que minhas pregas continuam intactas e, apesar de ter pensado em casamento algumas vezes, nunca cai na armadilha. depois do baque da notícia, resolvi que não desapontaria clarice. clarice abriu sua bolsa e tirou dela um tubo de lubrificante à base de água. sorriu para mim com um jeito sacana que aumentou exponencialmente o meu tesão. dei-lhe um beijo grego – nunca tinha realizado o ato, mas não hesitei – quando ela estava em pé, ao meu lado, e eu a virei, fazendo-a encarar a parede e enfiei minha cara entre suas nádegas firmes e deliciosas. depois ela apertou o tubo de lubrificante no indicador e fez seu dedo sumir onde antes minha língua passeava. ela mandou que eu sentasse na cama e se pôs por cima de mim. beijando-me, colocou a mão no meu pau e o colocando em contato com seu cu. senti seu esfíncter contraindo e relaxando com o toque da minha glande. depois senti o aperto quente e a resistência, senti seu interior apertando meu pênis. clarice gemia algo entre dor e prazer – indestinguível – bem no meu ouvido, então começou os movimentos.

clarice gostava de entrar no meu quarto quando eu não estava em casa – no terceiro mês de namoro entreguei a ela uma cópia da chave do apartamento – e escolher cinco ou seis dos meus livros da estante, sempre algum de poesia estava no meio – os livros que eram da minha mãe e que um dia resolvi mudar das prateleiras dela para as minhas. deitava na cama com os volumes e ficava lá, folheando os livros, procurando trechos que lhe agradassem. quando eu chegava em casa, encontrava seu corpo semi-nu ocupando o meu colchão, às vezes dormindo, às vezes lendo. um dia, nós dois deitados na cama, ela apontou para os livros e perguntou para mim qual deles era o meu favorito.

“eu não tenho um favorito. é como escolher um filho pra amar mais. cada um deles, até o pior, me fez algo bom.”

“então seu escritor favorito dentre todos esses aqui. tem um?”

“tem sim. demorou para aparecer pra mim, mas apareceu: roth.”

“quem?”

“você não sabe o quanto parte o meu coração por não saber quem ele é. philip roth, americano, judeu. consegue falar as verdades duras da vida como nenhum outro. todas as vezes que o leio me angustio por não conseguir chegar perto de sua maestria.”

“o que eu deveria ler dele?”

“tudo. mas eu sei que você não fará isso.” levantei e peguei um volume. joguei na barriga nua dela.

“ai.”

“comece por esse.” deitei mais uma vez ao lado dela. e comecei a beijar seu ventre nu enquanto ela folheava o livro que lhe entregara. sentia o cheiro bom de sua pele enquanto minha língua passeava ao redor do seu umbigo. ela mantinha uma concentração forçada até que tirei sua calcinha e enfiei minha língua entre suas pernas.

clarice demorou quase dois meses para ler o livro inteiro. cheia de desculpas esfarrapadas, dizia que estava ocupada na faculdade, que tinha pouco tempo para a leitura, que sua capacidade de se concentrar havia se alterado. perguntei o que ela achou. no que ela me respondeu com um

“é… assim… é bom, mas falta algo.”

meu coração foi acelerando. milhões de pensamentos passaram em minha mente e nenhum deles era elogioso a ela. sabia exatamente o que ela iria dizer. ela diria com uma voz mansa que era diferente do que ela gostava, que era algo que ela não esperava, que ela pensava que fosse ser algo mais intimista e subjetivo, algo cheio de metáforas sem sentido como as que ela tanto gosta, cheio de falta de coerência.

“falta o quê?” perguntei controlando a voz para que parecesse o menos trêmula possível.

“ah… sei lá… acho que eu esperava algo diferente. pensei que ele seria algo intimista e subjetivo. algo mais perto do que eu gosto, sabe?”

o que sentia em mim, naquele momento, é difícil de descrever. minhas mãos formigavam, meu rosto devia estar roxo. forcei um sorriso, mas ele não durou muito.

“sei… sei…” não conseguia dizer nada além disso. “acho que você tem o direito de não gostar do maior escritor do século XX – e que continua sendo o maior no XXI!” me exaltei ao final da frase, estava quase gritando.

“há controvérsias” ela disse um tanto ofendida, se defendendo.

“é claro que há. mas não há quem diga que a melhor prosa está nas linhas da tua xará!” eu não sei o que estava me acontecendo, as palavras simplesmente iam saindo, eu queria ofendê-la por não ter o mesmo gosto que eu, por não saber apreciar como eu soube. sentia que ela era alguma espécie de ser bizarro por não concordar comigo e simplesmente idolatrar o Homem. acima de tudo, me sentia enfurecido por ela ter deixado implícito que clarice era melhor que roth. eu simplesmente não podia aceitar aquela inverdade, não podia deixar que uma pessoa acreditasse em algo tão inverídico quanto isso. minha cabeça começou a doer, o mundo começou a girar.

clarice foi para longe de mim. disse que não queria me ver, falou que não a procurasse mais, que eu era um louco, que eu deveria me afastar dela, da humanidade toda. acho que não exagerei só. estava me arrependendo de tudo o que havia dito. sentia dentro de mim um remorso, creio eu, um sentimento de culpa, uma perda que agora sentia e parecia maior do que eu podia aguentar.

numa tarde de quinta, uma semana depois do ocorrido, o telefone tocou, estava deitado na cama quando atendi clarice.

“oi” disse a voz suave no outro lado da linha. ouvi-la me fez pensar que ela me fez falta, embora esse tenha sido o único momento em que realmente sentira sua falta em toda a semana.

“oi” respondi

“como você está?”

“eu…” ela não em deixou responder e agradeci por isso, porque sei que se respondesse que estava bem ela se sentiria mal.

“estou com saudades.” o silêncio pairou com o peso dessas palavras.

“eu também estou.”

imaginei como ela estaria do outro lado, deitada em sua cama com o telefone em mãos, sei que ouço seu som ligado em uma dessas bandas de pop que tentam ser a salvação do samba e da mpb e que eu insisto em não escutar por saber que todas são iguais e não cumprem suas promessas.

“queria te ver.”

“quando?”

“ah, sei lá. mais tarde?”

“ahn… pode ser. não tenho nada pra fazer hoje à noite. cinema, pode ser?”

“prefiro ver filme na tua casa, na tua cama, deitada com você.”

“…certo.”

“e depois do filme quero que você entre e saia de mim várias e várias vezes em todos os orifícios. eu sinto falta disso, de você dentro e fora de mim.”

clarice sabia como me domar.

ela desligou dizendo que por volta das oito apareceria. na hora marcada, girou no trinco a chave que lhe dera, entrou na casa silenciosa e fechou a porta sem fazer ruído algum, como se não houvesse porta, algo que só ela consegue fazer por aqui. eu a recebi com um beijo. não vimos filme nenhum, é verdade, mas fizemos todo o resto planejado. e continuamos a fazê-lo por meses e meses. até que não mais.


anabel, ou o sentido que não existe.

setembro 14, 2010

moro num prédio antigo, muito antigo. vez por outra um pedaço de reboco cai de uma das paredes do edifício e suja o chão com sua branquidão seca. definitivamente aqui não é o lugar limpo que todos esperavam que eu fosse morar, inclusive eu. aqui não tem nada pronto. no armário estão todas as coisas que esperam por mim para jogá-las numa panela e transformá-las em comida: macarrão, arroz, feijão. no congelador estão pedaços de animais mortos: frangos, bois, creio até que um pouco de porco, mas não estou tão certo quanto a isso. o fato é que eu nunca faço as coisas que deveria fazer, nunca cozinho, nunca como corretamente. o único verde da casa é o pão mofado que está na mesa, há três dias esperando que eu o leve para a lata do lixo. moro só. mentira. eu vivo com o mundo inteiro. tenho uma televisão que vive ligada mesmo quando não estou assistindo, um computador com acesso ilimitado à rede em banda larga, tenho muitos livros que já li e alguns poucos que lerei em estantes que não pegam poeira porque é a única parte da casa que eu cuido. meus livros são meus tesouros, meus queridos, minha alma fora de mim. sem eles não sei se conseguiria sobreviver a esse mar de gente que está lá fora só esperando que eu saia para que possam me afogar em mediocridade, em ignorância, em coisas sem nenhum valor que eles acreditam que são as coisas que dão sentido à vida. como se precisasse de algum sentido.

boa parte do tempo estou reclamando do calor, do clima seco, do clima chuvoso, do dia longo e noite curta, do sol de sete da manhã, do sol de meio dia, do sol das três da tarde, das pessoas que falam muito, das pessoas que falam pouco, das pessoas que não falam comigo e das pessoas que falam comigo, dos livros que as pessoas lêem e dos livros que elas não lêem, das músicas das rádios, das músicas dos cds, das músicas dos mp3 players, das músicas dos sons dos carros nas ruas, dos carros nas ruas, dos ônibus na rua, das motos nas ruas, das pessoas nas ruas, das pessoas em suas casas ouvindo suas músicas ruins tão alto que ouço de onde moro, da programação da televisão, das pessoas que assistem aos programas de tv, das pessoas que não assistem aos programas de tv que assisto… enfim, arranje um assunto e eu posso reclamar dele.

boa parte do tempo que tenho aqui gasto com as coisas que não deveria. mas acredito que seja assim com todos aqueles irresponsáveis como eu. talvez por isso eu estude o que estudo, talvez por achar que a vida é curta demais para se preocupar e tomar responsabilidades em suas costas eu tenha escolhido fazer isso que faço. talvez porque eu não tenha sido feito para salvar vidas sendo um médico graduado ou para defender e julgar pessoas, nem mesmo para construir prédios. profissões cuja responsabilidade me arrepia só de pensar. não, não quero nada disso para mim. o peso de uma vida é grande demais para que queira carregá-la. melhor deixar com que outros matem pacientes, julguem inocentes e derrubem edifícios. deixe que outros sejam culpados por essas coisas, meu maior erro não se compara a nada perto desses.

não que meus pais não quisessem que eu fosse um médico ou coisa assim. e eu até tentei, juro como tentei. em algum lugar da casa deve haver um diploma, sabe, mas deixa ele lá, o peso que ele traz não é nem um pouco o que quero para minha vida, me deixe com meus livros, para catalogá-los e pô-los na ordem que quiser, por autor, por título, por ano de lançamento, por edição. deixe-me ler meus filósofos e meus poetas e passar noites lendo livros que poucas pessoas por aqui leram, de autores extremamente fabulosos que ninguém sabia da existência. deixe-me esquecido de pelo menos dois terços da turma da faculdade – na qual apareço todos os dias só para variar um pouco da monotonia – onde assisto a aulas estúpidas de uma das cadeiras bizarras de alguma dessas logias da vida – e noto que todos que prestam atenção àquilo são os mesmos dois terços que não se relacionam comigo. gosto de estar na sala para observar, desde sempre, sempre achei uma atividade antropológica fabulosa essa do ritual da sala de aula. e outra: a faculdade é um ótimo exemplo de etologia.

das pessoas ao meu redor, a melhor é anabel. ela estuda na mesma classe que eu, entre tantos ninguéns, e é, como eu, uma desiludida, ou melhor, uma iluminada. sabe das coisas que tantos fazem questão de fechar os olhos e não enxergar. anda sempre com seus olhos azuis bem abertos, injetados como se num momento de calmo pavor furioso. é ela a única que vem à minha casa, a única que usa meu banheiro, a única que deita na minha cama, a única que joga meu pão mofado na lata de lixo, a única que usa o gás e faz comidas deliciosas. anabel tem um jeito todo estranho de ser e é por isso que nos damos tão bem. uma vez perguntei por que é que ela era como ela era e ela sorriu e disse – em inglês, numa bela referência a “blade runner” – que tinha visto coisas que as pessoas não acreditariam. foi nesse dia que soube que nenhuma outra mulher que deitasse na minha cama seria como anabel. ela não é um pedaço de mau caminho, e com seus quase quarenta anos, dois filhos e um marido morto, se encontra longe disso, mas é o caminho que eu percorro sem me cansar e sem me desviar. foram precisos trinta anos, dois cursos de graduação, três anos de um trabalho odioso, isolado no meio do mato para ganhar o suficiente para que não precisasse trabalhar por alguns anos; foi preciso dizer adeus a meus pais, a meus dias de paz, adeus a coisas que eu nem sabia que iriam embora – a sonhos e promessas -, mas hoje sinto que estou, de alguma forma que não sei descrever, bem.