Archive for setembro, 2010

o livro.

setembro 28, 2010

o livro em suas mãos tem mais tempo que o tempo seria capaz de contar e já foi manuseado por inúmeros homens e não homens. a capa escura não quer dizer que o couro que a encaderna é antigo, pensar isso é um erro, já que se trata de uma criatura que deixou de existir há éons, cujas formas se perderam nas mentes e o único registro de sua existência está ali, no livro. as folhas ásperas sentem seu toque e se comunicam com ele, os símbolos gravados com algo que parece sangue, inintendíveis ao primeiro olhar, se fazem compreender com um pouco de concentração. o volumoso tomo chegara em sua casa de forma misteriosa, um dia, há cerca de dois meses, aparecera na mesa de sua sala, com uma carta de poucas palavras escrita à mão. nela dizia apenas que havia muito mais no universo do que o homem sonhava e que aquele era a legítima herança que lhe fora deixada.

embora a verdadeira origem do tomo seja um completo mistério, há mil e trezentos anos o livro foi encontrado pelo poeta árabe Al Azif, que recebeu os créditos por sua escrita, sendo ele, na realidade, o difundor do livro, fazendo cópias quase autênticas em diversas línguas (línguas desconhecidas por Al Azif, inclusive) que apresentavam o mesmo poder do original – não se sabe como conseguiu realizar tal façanha. enlouquecido e tomado pelo poder do livro, perambulou pelo mundo carregando o volume original entre seus pertences, deixando a seus herdeiros suas obras em diversas línguas, para que o conhecimento nunca se perdesse. a verdade, que nunca saira dos lábios do poeta, é que descobrira o tomo em uma exploração de tumbas na região que hoje é jerusalem, na qual se envolvera a fim de solucionar alguns de seus muitos problemas monetários.

no entanto, há dois mil anos o mesmo livro esteve nas mãos de outro humano, nascido na galiléia, chamado de nazareno por seu povo. ao expor suas idéias e seu conhecimento, ao utilizar dos conhecimentos encontrados no tomo, falando das verdades inconvenientes e dos mistérios e segredos que regem coisas maiores que os próprios humanos poderiam imaginar e aceitar – ao derrubar a suposição vigente na época, e até hoje, de que aqueles seres de barro eram os donos do universo -, o homem foi condenado por seus iguais e o livro foi guardado por seus aliados por séculos, como uma relíquia sagrada deixada pelo homem que revolucionou a humanidade. até que al azif a encontrou.

milênios antes do nazareno, o livro foi lido por uma mulher que, tomada pela iluminação e pela verdade, pela sede de conhecimento, compartilhou-o com seu parceiro e despertou a ira de um dos deuses menores do universo. seu temor pelo que havia no livro era tamanho que não teve coragem de tocá-lo, simplesmente baniu suas crias – que, embora não soubessem, tinham em suas mãos o conhecimento que os tornaria maior que ele próprio. ambos se espalharam pelo mundo e dominaram, com o conhecimento adquirido através do tomo, roubado um dia por seu filho, que matou o irmão ao realizarum dos rituais descritos nas páginas amareladas do tomo, tornando-se, assim, intocável  por humanos e imaculável pelo tempo, o primeiro imortal, que caminhou por todo o mundo e desposou suas inúmeras irmãs e com elas teve filhos e formou tribos e cidades ao redor de todo o mundo conhecido.

hoje um de seus herdeiros tem o pesado volume em suas mãos. o livro que foi lido por deuses e escrito pelos anciãos do multiverso, depois de muitos anos de buscas vãs e tentativas frustradas de destrui-lo – tendo muitas de suas cópias apagadas da história por fanáticos religiosos com medo do verdadeiro conhecimento -, volta a pertencer a alguém com o potencial de aprender e entender as complexidades sem sucumbir por completo ao peso do conhecimento.

o homem que encara o livro tem olhos profundos e negros, como se a noite estivesse sempre presente em seu olhar, como se a escuridão jamais o abandonasse. todos os dias, depois de fingir uma rotina de trabalho, seguindo com suas interações sociais como se realmente fossem importantes, se recolhe em sua casa com a finalidade de aprender os segredos que o universo não revela sozinho, porque não está nos objetivos das maiores criaturas a compreensão completa do universo por todos, não ainda. mas em seu peito arde atodos os dias a vontade de espalhar a palavra única e verdadeira, de fazer o mundo compreender o universo e entender as verdades. todas as noites realiza ao menos um dos inúmeros rituais contidos no livro, a inversão da entropia, a energia que nunca se dissipa, a criação de vida onde antes não havia. a cada raiar de sol sua mente se encontra mais poderosa, cada vez mais perto da verdadeira iluminação e da completa loucura.

descobriram o homem em sua casa, seu corpo, antes robusto, completamente irreconhecível, magro como se tivesse sido sugado por dentro, a pele grudada ao osso, o fedor insuportável de fezes e carne apodrecendo. os peritos disseram que a morte viera há 72 horas, mas a desconfiança surgira no trabalho há duas semanas, quando simplesmente deixou de aparecer por lá sem ligar e não atendia aos telefonemas. vizinhos relatam que viam movimentos na casa, especialmente à noite, quando a casa parecia ser iluminada não por eletricidade, mas somente por velas. nada de estranho foi encontrado em sua residência, nem velas, nem livros.

o livro estava nas mãos calejadas e escuras de um homem de barbas longas e bem feitas, suas unhas longas e dedos cheios de anéis seguravam firme o volume, pressionando contra seu corpo. usava um terno alinhado e seu cabelo negro escorria por sobre seus ombros, seu rosto moreno apresentava marcas de um sol que costuma ser visto em trabalhadores braçais, o sol de milênios. o tempo não passara desde a última vez que tivera o tomo em suas mãos. e agora voltava para aquele que soube realmente usufruir do verdadeiro conhecimento oculto contido nas milhares de páginas. o livro voltava ao primeiro e único imortal.

Clarice e Philip.

setembro 22, 2010

clarice recebeu seu nome por causa da escritora. para ela, isso é motivo de orgulho. ser chamada como a escritora – dona dos melhores livros da literatura brasileira, ela me diz – a faz estufar seu peito – um busto pequeno, de seios não fartos, mas firmes e suculentos, donos de uma brancura de fazer inveja a muitas folhas de papel. ela não parece aceitar bem quando rio todas as vezes em que fala dos livros, mas parece gostar quando – enquanto lambo seu pescoço e ela geme de leve com minhas mãos passeando por seu corpo, sentindo suas carnes das ancas e seios – digo que ela é melhor que a homenageada em todos e quaisquer sentidos.

os pais de clarice eram educadores. o pai ensinava literatura e a mãe ensinava português (não cabe aqui meu relacionamento com os dois. talvez em tempos futuros eu conte os causos divertidos e os dramas de ter sogros fanáticos por escritores que não gostamos). clarice saiu uma fanática por livros e foi numa das bienais da vida que a encontrei. ela me viu perguntando a algum dos trabalhadores do estande em que estavamos se havia algum escritor nacional interessante. então ela veio na minha direção – enquanto o vendedor me indicava uns livros – e me disse que devia ler clarice. ela disse isso num sorriso que indicava que, se meu rosto agisse como tipicamente – com uma careta seguida de um longo não – , não falaria com ela por muito mais tempo. no entanto, ela era uma garota tão linda – os olhos verdes, as sardas no nariz, os cabelos castanhos, os lábios e bochechas rosados – que mesmo depois daquela indicação eu quis manter uma conversa com ela. então, fingindo um interesse que não tinha, desviei minha atenção dos conselhos que pedira ao vendedor e me foquei em perguntar a ela o que ela recomendava. ela me falou de livros que já li – quatro – e alguns dos que não li, mas fingi completa ignorância em relação ao assunto e disse nunca ter lido nenhum trabalho dela. no meio dessa conversa inicial trocamos nomes e emails com a promessa de auxiliar um ao outro com boas dicas de leitura. cumpri minha promessa, ela não.

depois dessa nossa conversa, cerca de dois dias, creio, ela me apareceu no email perguntando como eu ia, o que fazia e se tinha encontrado a mágica de ler clarice. eu disse que tinha começado a ler clarice agora, porque ela só tinha me escrito agora. ela disse que eu deveria ler a original – consigo ouvi-la dizendo isso com sua voz aguda e estridente, às vezes irritante, num tom de chateação por eu não ter feito as coisas como ela queria – e que, se eu quisesse, ela me emprestaria seus livros mais queridos. eu concordei, marcamos de nos encontrar numa cafeteria no centro da cidade. cheguei e ela já estava lá, perguntei se havia chegado há tempo e ela disse que não, que acabara de chegar (mais tarde ela confessou que tinha chegado lá uma hora antes de eu aparecer, tomado uns dois cafés irlandeses e começado a escrever duas vezes uma carta indicando seus trechos e aspectos favoritos da escrita da clarice original, mas havia desistido as duas vezes). tinha os livros numa sacola, eram três, eu disse que achava melhor não levá-los todos e ela disse que fazia questão que eu os levasse todos, que não tinha pressa e que havia uma ordem de leitura especial. perguntei se era a cronológica, para sentir a evolução da escritora, e ela me disse que não, que era uma ordem sentimental – o primeiro livro dela que ela lera, passando pelo mais marcante e pelo mais “intenso”. eu disse que leria, que pensaria nela enquanto lesse. ela sorria. depois de algum tempo de conversa, resolvemos dar um passeio – fora do café o sol já tinha se posto – em busca de um bar. foi no caminho do bar que coloquei meu braço ao redor de sua cintura e senti seu calor vindo em minha direção, então, seus lábios vieram contra os meus e sua língua se movia feito uma enguia fora da água na minha boca.

passei quatro semanas lendo os três livros que ela me passou (dois deles eu já tinha lido, mas não disse a ela e terminei relendo-os) e não consegui gostar de nenhum. nesse meio tempo, encontrei com clarice algumas vezes – em média, saíamos duas vezes por semana, o que nos deixa com cerca de oito saídas – e começamos a nos relacionar carnalmente. creio que foi na quarta ou quinta saída que aconteceu nossa primeira conjunção carnal. foi na tarde de sábado em que devolvi seus livros, o dia em que ela me chamou para ir à sua casa pela primeira vez, o dia em que conheci válter e cecília, os pais de clarice. uma palavra para descreve-los seria excentricidade. eles me perguntaram sobre meus pais, sobre o que eu fazia, perguntaram se eu gostava do que fazia, eu menti como faço com todos e disse que sim, que estava achando tudo muito interessante. eles continuaram me interrogando para saber onde estudei, com quem andei, que músicas ouvia, que livros lia, que filmes assistia. e respondi a tudo com prontidão e solicitude. querendo passar uma boa impressão a quem, achava, seriam meus futuros sogro e sogra. eles me falaram da infância de clarice e outras amenidades assim até que chegou a hora do da janta e ela foi servida. nos alimentamos e depois saí com clarice para um show num teatro, havia uma exposição fotográfica na ante sala. não lembro bem o que a banda tocava e nem prestei atenção às fotografias expostas. naquela noite clarice dormiu na minha casa sem que ninguém além de nós dois soubessemos. foi aí que descobri que clarice adorava dar o cu. ela sentou no meu colo, depois de nos chuparmos por um bom tempo, e disse – ao meu ouvido – que queria dar o cu pra mim. devo admitir que isso me emocionou, até porque nunca tinha encontrado alguém que me dissesse isso. geralmente eu tinha que insistir em tentativas frustradas cujas respostas variavam entre: “só depois do casamento” e “nunca! jamais!”, passando pelo “eu dou o meu se você der o teu”. devo esclarecer que minhas pregas continuam intactas e, apesar de ter pensado em casamento algumas vezes, nunca cai na armadilha. depois do baque da notícia, resolvi que não desapontaria clarice. clarice abriu sua bolsa e tirou dela um tubo de lubrificante à base de água. sorriu para mim com um jeito sacana que aumentou exponencialmente o meu tesão. dei-lhe um beijo grego – nunca tinha realizado o ato, mas não hesitei – quando ela estava em pé, ao meu lado, e eu a virei, fazendo-a encarar a parede e enfiei minha cara entre suas nádegas firmes e deliciosas. depois ela apertou o tubo de lubrificante no indicador e fez seu dedo sumir onde antes minha língua passeava. ela mandou que eu sentasse na cama e se pôs por cima de mim. beijando-me, colocou a mão no meu pau e o colocando em contato com seu cu. senti seu esfíncter contraindo e relaxando com o toque da minha glande. depois senti o aperto quente e a resistência, senti seu interior apertando meu pênis. clarice gemia algo entre dor e prazer – indestinguível – bem no meu ouvido, então começou os movimentos.

clarice gostava de entrar no meu quarto quando eu não estava em casa – no terceiro mês de namoro entreguei a ela uma cópia da chave do apartamento – e escolher cinco ou seis dos meus livros da estante, sempre algum de poesia estava no meio – os livros que eram da minha mãe e que um dia resolvi mudar das prateleiras dela para as minhas. deitava na cama com os volumes e ficava lá, folheando os livros, procurando trechos que lhe agradassem. quando eu chegava em casa, encontrava seu corpo semi-nu ocupando o meu colchão, às vezes dormindo, às vezes lendo. um dia, nós dois deitados na cama, ela apontou para os livros e perguntou para mim qual deles era o meu favorito.

“eu não tenho um favorito. é como escolher um filho pra amar mais. cada um deles, até o pior, me fez algo bom.”

“então seu escritor favorito dentre todos esses aqui. tem um?”

“tem sim. demorou para aparecer pra mim, mas apareceu: roth.”

“quem?”

“você não sabe o quanto parte o meu coração por não saber quem ele é. philip roth, americano, judeu. consegue falar as verdades duras da vida como nenhum outro. todas as vezes que o leio me angustio por não conseguir chegar perto de sua maestria.”

“o que eu deveria ler dele?”

“tudo. mas eu sei que você não fará isso.” levantei e peguei um volume. joguei na barriga nua dela.

“ai.”

“comece por esse.” deitei mais uma vez ao lado dela. e comecei a beijar seu ventre nu enquanto ela folheava o livro que lhe entregara. sentia o cheiro bom de sua pele enquanto minha língua passeava ao redor do seu umbigo. ela mantinha uma concentração forçada até que tirei sua calcinha e enfiei minha língua entre suas pernas.

clarice demorou quase dois meses para ler o livro inteiro. cheia de desculpas esfarrapadas, dizia que estava ocupada na faculdade, que tinha pouco tempo para a leitura, que sua capacidade de se concentrar havia se alterado. perguntei o que ela achou. no que ela me respondeu com um

“é… assim… é bom, mas falta algo.”

meu coração foi acelerando. milhões de pensamentos passaram em minha mente e nenhum deles era elogioso a ela. sabia exatamente o que ela iria dizer. ela diria com uma voz mansa que era diferente do que ela gostava, que era algo que ela não esperava, que ela pensava que fosse ser algo mais intimista e subjetivo, algo cheio de metáforas sem sentido como as que ela tanto gosta, cheio de falta de coerência.

“falta o quê?” perguntei controlando a voz para que parecesse o menos trêmula possível.

“ah… sei lá… acho que eu esperava algo diferente. pensei que ele seria algo intimista e subjetivo. algo mais perto do que eu gosto, sabe?”

o que sentia em mim, naquele momento, é difícil de descrever. minhas mãos formigavam, meu rosto devia estar roxo. forcei um sorriso, mas ele não durou muito.

“sei… sei…” não conseguia dizer nada além disso. “acho que você tem o direito de não gostar do maior escritor do século XX – e que continua sendo o maior no XXI!” me exaltei ao final da frase, estava quase gritando.

“há controvérsias” ela disse um tanto ofendida, se defendendo.

“é claro que há. mas não há quem diga que a melhor prosa está nas linhas da tua xará!” eu não sei o que estava me acontecendo, as palavras simplesmente iam saindo, eu queria ofendê-la por não ter o mesmo gosto que eu, por não saber apreciar como eu soube. sentia que ela era alguma espécie de ser bizarro por não concordar comigo e simplesmente idolatrar o Homem. acima de tudo, me sentia enfurecido por ela ter deixado implícito que clarice era melhor que roth. eu simplesmente não podia aceitar aquela inverdade, não podia deixar que uma pessoa acreditasse em algo tão inverídico quanto isso. minha cabeça começou a doer, o mundo começou a girar.

clarice foi para longe de mim. disse que não queria me ver, falou que não a procurasse mais, que eu era um louco, que eu deveria me afastar dela, da humanidade toda. acho que não exagerei só. estava me arrependendo de tudo o que havia dito. sentia dentro de mim um remorso, creio eu, um sentimento de culpa, uma perda que agora sentia e parecia maior do que eu podia aguentar.

numa tarde de quinta, uma semana depois do ocorrido, o telefone tocou, estava deitado na cama quando atendi clarice.

“oi” disse a voz suave no outro lado da linha. ouvi-la me fez pensar que ela me fez falta, embora esse tenha sido o único momento em que realmente sentira sua falta em toda a semana.

“oi” respondi

“como você está?”

“eu…” ela não em deixou responder e agradeci por isso, porque sei que se respondesse que estava bem ela se sentiria mal.

“estou com saudades.” o silêncio pairou com o peso dessas palavras.

“eu também estou.”

imaginei como ela estaria do outro lado, deitada em sua cama com o telefone em mãos, sei que ouço seu som ligado em uma dessas bandas de pop que tentam ser a salvação do samba e da mpb e que eu insisto em não escutar por saber que todas são iguais e não cumprem suas promessas.

“queria te ver.”

“quando?”

“ah, sei lá. mais tarde?”

“ahn… pode ser. não tenho nada pra fazer hoje à noite. cinema, pode ser?”

“prefiro ver filme na tua casa, na tua cama, deitada com você.”

“…certo.”

“e depois do filme quero que você entre e saia de mim várias e várias vezes em todos os orifícios. eu sinto falta disso, de você dentro e fora de mim.”

clarice sabia como me domar.

ela desligou dizendo que por volta das oito apareceria. na hora marcada, girou no trinco a chave que lhe dera, entrou na casa silenciosa e fechou a porta sem fazer ruído algum, como se não houvesse porta, algo que só ela consegue fazer por aqui. eu a recebi com um beijo. não vimos filme nenhum, é verdade, mas fizemos todo o resto planejado. e continuamos a fazê-lo por meses e meses. até que não mais.

anabel, ou o sentido que não existe.

setembro 14, 2010

moro num prédio antigo, muito antigo. vez por outra um pedaço de reboco cai de uma das paredes do edifício e suja o chão com sua branquidão seca. definitivamente aqui não é o lugar limpo que todos esperavam que eu fosse morar, inclusive eu. aqui não tem nada pronto. no armário estão todas as coisas que esperam por mim para jogá-las numa panela e transformá-las em comida: macarrão, arroz, feijão. no congelador estão pedaços de animais mortos: frangos, bois, creio até que um pouco de porco, mas não estou tão certo quanto a isso. o fato é que eu nunca faço as coisas que deveria fazer, nunca cozinho, nunca como corretamente. o único verde da casa é o pão mofado que está na mesa, há três dias esperando que eu o leve para a lata do lixo. moro só. mentira. eu vivo com o mundo inteiro. tenho uma televisão que vive ligada mesmo quando não estou assistindo, um computador com acesso ilimitado à rede em banda larga, tenho muitos livros que já li e alguns poucos que lerei em estantes que não pegam poeira porque é a única parte da casa que eu cuido. meus livros são meus tesouros, meus queridos, minha alma fora de mim. sem eles não sei se conseguiria sobreviver a esse mar de gente que está lá fora só esperando que eu saia para que possam me afogar em mediocridade, em ignorância, em coisas sem nenhum valor que eles acreditam que são as coisas que dão sentido à vida. como se precisasse de algum sentido.

boa parte do tempo estou reclamando do calor, do clima seco, do clima chuvoso, do dia longo e noite curta, do sol de sete da manhã, do sol de meio dia, do sol das três da tarde, das pessoas que falam muito, das pessoas que falam pouco, das pessoas que não falam comigo e das pessoas que falam comigo, dos livros que as pessoas lêem e dos livros que elas não lêem, das músicas das rádios, das músicas dos cds, das músicas dos mp3 players, das músicas dos sons dos carros nas ruas, dos carros nas ruas, dos ônibus na rua, das motos nas ruas, das pessoas nas ruas, das pessoas em suas casas ouvindo suas músicas ruins tão alto que ouço de onde moro, da programação da televisão, das pessoas que assistem aos programas de tv, das pessoas que não assistem aos programas de tv que assisto… enfim, arranje um assunto e eu posso reclamar dele.

boa parte do tempo que tenho aqui gasto com as coisas que não deveria. mas acredito que seja assim com todos aqueles irresponsáveis como eu. talvez por isso eu estude o que estudo, talvez por achar que a vida é curta demais para se preocupar e tomar responsabilidades em suas costas eu tenha escolhido fazer isso que faço. talvez porque eu não tenha sido feito para salvar vidas sendo um médico graduado ou para defender e julgar pessoas, nem mesmo para construir prédios. profissões cuja responsabilidade me arrepia só de pensar. não, não quero nada disso para mim. o peso de uma vida é grande demais para que queira carregá-la. melhor deixar com que outros matem pacientes, julguem inocentes e derrubem edifícios. deixe que outros sejam culpados por essas coisas, meu maior erro não se compara a nada perto desses.

não que meus pais não quisessem que eu fosse um médico ou coisa assim. e eu até tentei, juro como tentei. em algum lugar da casa deve haver um diploma, sabe, mas deixa ele lá, o peso que ele traz não é nem um pouco o que quero para minha vida, me deixe com meus livros, para catalogá-los e pô-los na ordem que quiser, por autor, por título, por ano de lançamento, por edição. deixe-me ler meus filósofos e meus poetas e passar noites lendo livros que poucas pessoas por aqui leram, de autores extremamente fabulosos que ninguém sabia da existência. deixe-me esquecido de pelo menos dois terços da turma da faculdade – na qual apareço todos os dias só para variar um pouco da monotonia – onde assisto a aulas estúpidas de uma das cadeiras bizarras de alguma dessas logias da vida – e noto que todos que prestam atenção àquilo são os mesmos dois terços que não se relacionam comigo. gosto de estar na sala para observar, desde sempre, sempre achei uma atividade antropológica fabulosa essa do ritual da sala de aula. e outra: a faculdade é um ótimo exemplo de etologia.

das pessoas ao meu redor, a melhor é anabel. ela estuda na mesma classe que eu, entre tantos ninguéns, e é, como eu, uma desiludida, ou melhor, uma iluminada. sabe das coisas que tantos fazem questão de fechar os olhos e não enxergar. anda sempre com seus olhos azuis bem abertos, injetados como se num momento de calmo pavor furioso. é ela a única que vem à minha casa, a única que usa meu banheiro, a única que deita na minha cama, a única que joga meu pão mofado na lata de lixo, a única que usa o gás e faz comidas deliciosas. anabel tem um jeito todo estranho de ser e é por isso que nos damos tão bem. uma vez perguntei por que é que ela era como ela era e ela sorriu e disse – em inglês, numa bela referência a “blade runner” – que tinha visto coisas que as pessoas não acreditariam. foi nesse dia que soube que nenhuma outra mulher que deitasse na minha cama seria como anabel. ela não é um pedaço de mau caminho, e com seus quase quarenta anos, dois filhos e um marido morto, se encontra longe disso, mas é o caminho que eu percorro sem me cansar e sem me desviar. foram precisos trinta anos, dois cursos de graduação, três anos de um trabalho odioso, isolado no meio do mato para ganhar o suficiente para que não precisasse trabalhar por alguns anos; foi preciso dizer adeus a meus pais, a meus dias de paz, adeus a coisas que eu nem sabia que iriam embora – a sonhos e promessas -, mas hoje sinto que estou, de alguma forma que não sei descrever, bem.